segunda-feira, 4 de agosto de 2008

A Guardiã de Anita

A guardiã de Anita Malfatti

Restauradora oficial da pintora tem em sua casa um acervo maior do que o de muitos museus do País

Vitor Hugo Brandalise


Todo tesouro tem seu guardião. "Aí, não! Aí, ninguém entra!", estaca, barrando a passagem do quarto-ateliê, a restauradora de obras de arte Stella de Mendonça. "Mas olhe para os lados: não é mais interessante?" Com o queixo, aponta as paredes que a rodeiam - ali, na pequena sala e no corredor, está exposto um acervo da pintora Anita Malfatti maior que o de qualquer museu do mundo: são 42 quadros, gravuras e desenhos, escondidos no apartamento de três cômodos, em algum lugar da zona sul de São Paulo. Dentro do ateliê, outras 35 obras - mas essas, até que estejam restauradas, ninguém poderá ver.Stella, aos 49 anos, é a restauradora oficial da obra de Anita Malfatti, que produziu cerca de 3 mil quadros entre 1909 e 1964. Desde 1982, quando realizou seu primeiro trabalho - já estreou com obra de Anita, a gravura Lucy Shalders, de 1910 -, Stella calcula já ter restaurado mais de 150 obras da pintora. Consta ainda do seu currículo o restauro de obras de Salvador Dalí, Pablo Picasso, Cândido Portinari, Toulouse Lautrec... "O coração vai aos pulos, mas a mão não pode tremer."Desde 2004, esta profissional - que salva obras históricas do verniz oxidado, dos ácaros e dos rasgões - guarda o acervo de Anita Malfatti no apartamento acanhado, de menos de 70 metros quadrados, onde trabalha e mora. Olhando de fora, ninguém poderia imaginar. Do malcuidado quintal da frente - com roseiras de botões mirrados, além dos sapos, abelhas e papagaios de cerâmica -, ao saguão da portaria, onde está pendurada uma reprodução barata de Monet, nada indicaria o tesouro de andares acima. "Nem meus vizinhos sabem o que há aqui", conta.Para entrar no apartamento, é necessário conhecer os meandros mais restritos do círculo artístico da capital - na verdade, além de familiares, apenas marchands e colecionadores batem à porta, para negociar o preço de uma obra ou solicitar uma restauração. "Por questão de segurança, é um lugar reservado", comenta. "Apenas oito ou nove pessoas, além da minha família, sabem o que guardo aqui."Nas paredes recém-pintadas - de verde e branco, cores preferidas de Anita Malfatti - ficam penduradas relíquias da pintora, que ajudam a contar a história da arte no País. Próxima da janela da sala, a obra mais rara atualmente no acervo: a Sinfonia Colorida, de 1916, exposta na polêmica mostra de 1917. Após a exposição, de tão criticada pelos conservadores que defendiam os valores academicistas vigentes, Anita acabou unindo futuros expoentes do modernismo nacional - foi em torno dela, e a partir da exposição de 1917, que o grupo modernista se uniria para mais tarde organizar a Semana de Arte Moderna de 1922.Por tudo isso, a Sinfonia Colorida, que aguarda, pendurada na saleta de menos de 20 metros quadrados, a revisão no último restauro, está avaliada em R$ 3 milhões. Atrás da porta da sala, outra relíquia: ao lado da estante, pouco mais de dois palmos acima do rodapé, avaliada em R$ 18 mil, fica a gravura Árvores Japonesas - ilustre representante da Semana de 22, exposta no apartamentozinho da zona sul. "Às vezes, me sinto morando em um museu", suspira a restauradora. "Mas é tanta história que não saberia mais viver em outro lugar." Outra figura de destaque no acervo de Stella é o quadro São Paulo Apóstolo, pintado em 1955, avaliado em R$ 800 mil e pelo qual Stella nutre especial predileção - em oposição aos críticos de arte, que preferem as obras da Anita do início da carreira, expostas na Semana de 22, com influências da primeira fase do expressionismo alemão. "Anita tomou a liberdade de pintar o que sentisse. Assim o fez a vida inteira, pintou o que quisesse, quando quisesse. Não seguiu escolas, era autêntica", defende a guardiã, sentada em uma das cadeiras que ficam no centro da sala - as mesmas, exatamente as mesmas, em que estiveram sentados os convidados de Anita Catharina Malfatti, na sua primeira exposição individual, em 1914.ADMIRAÇÃODifícil se sentar em uma cadeira quase centenária, de madeira forrada com palha, sem nenhum receio. Elas rangem ao menor movimento para frente, ao menor movimento para trás. "Não quebram, não. Agüentaram tanto tempo, vão agüentar muito mais. Elas estão na casa de uma restauradora", brinca Stella.Além dos quadros e cadeiras, o apartamento de Stella é todo Anita. Os talheres, de prata, levam gravados os monogramas "K" e "M" - de Krug, sobrenome da mãe de Anita, e de Malfatti. Os pratos, de porcelana inglesa, foram adquiridos pela pintora em uma de suas viagens ao exterior - entre 1911 e 1928, Anita se mudou para Paris e Nova York quatro vezes, para estudar artes. O sofá e a poltrona, verdes, também foram da pintora, no tempo em que ela morava na Alameda Eduardo Prado. Além disso, até o início do ano, a restauradora dormia com o mesmo travesseiro usado pela pintora modernista nas últimas décadas de vida. "É tudo a mais pura admiração mesmo", diz. "Mas percebi que o travesseiro também é relíquia e deixei de usar. Só fica de enfeite em cima da cama."Para que as obras e objetos chegassem aos seus cuidados, Stella recebeu todo o apoio da família: a mãe, também restauradora, a levou pela orelha para a Casa Rui Barbosa, no Rio, onde aprendeu o ofício. Após completar os estudos, uma das sobrinhas herdeiras do acervo de Anita, Betty Malfatti, da qual Stella também é parente distante, a convidou para o cargo de restauradora oficial. "Pareceu mágica: foi começar com a Anita para não largá-la mais. Agora, depois de restaurar tanto, quero mostrar a verdadeira Anita, uma das pintoras mais incompreendidas do País."A revolta é com os críticos que, enquanto idolatram as obras do início da carreira de Anita, como O Homem Amarelo e O Japonês, desprezam as que foram produzidas a partir da década de 1930 - dizem que são "infantis". Como o grupo modernista que se reuniu em torno de Anita para defendê-la após a exposição de 1917, agora, Stella vê a oportunidade de fazer sua própria defesa. A restauradora está fazendo a pesquisa histórica de um livro, que Betty Malfatti deve lançar até o fim do ano. A obra toda, conta Stella, terá sido produzida a partir do apartamento da zona sul, do computador instalado dentro do quarto-ateliê, rodeado de Anita Malfatti. "Quer inspiração melhor?"
Karlene Braga

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá! O endereço do Estadão sobre a matéria: http://acervo.estadao.com.br/procura/#!/Guardi%C3%A3+de+Anita+Malfatti/Acervo/acervo