domingo, 15 de junho de 2008

ARTE NA PRÉ-HISTÓRIA: NATURALISMO E GEOMETRISMO

Martinho Campos (*)


Comecemos por uma questão: a pintura de uma bisonte na caverna pré-histórica de Altamira, Espanha, datada entre 15.000 e 10.000 a.C. e as demais, encontradas em outros sítios arqueológicos, com datação semelhante, podem ser consideradas arte?
Certamente, não o era para o troglodita. Este não poderia ter a “consciência artística”, como noção de necessidade estética, sob o ângulo histórico de formação da humanidade.

Não obstante, convencionou-se denominar aquelas pinturas de arte. Arte pré-histórica, arte das cavernas. Com uma função definida ou, em outros termos, com uma necessidade própria e advinda das condições existenciais daquele seres, que necessitavam a cada instante sobreviver, superando dificuldades enormes, haja vista a potência destruidora e predadora , por exemplo, de um tigre de dentes de sabre, ou de um mastodonte, ou mesmo a pujança física de um bisonte, que lhe serviria de alimento.

Como ver, então, essas pinturas? Não basta admirá-las pela condição de serem belas e vívidas ou pela perfeição com que o “artista” da caverna retratou a natureza. Qual a finalidade dessas pinturas? Por que aí deve residir a essência básica de todas as manifestações estéticas que o homem em seu desenvolvimento até os dias atuais vêm experimentando. O pintor rupestre provavelmente buscou alimentar a esperança de que ao capturar a imagem do animal, pintando-a na parede da caverna, ganhava uma força maior, mágica, a capacitar-lhe a captura propriamente dita de sua caça (WOODFORD,1983).

Provavelmente, essa seja a explicação mais viável. Os autores da História da Arte, os arqueólogos, com maior ou menor profundidade, de diferentes matizes ideológicos, não têm diferido em essência quando tratam da interpretação deste ato de realismo naturalista, que corresponde à pintura rupestre, convictos de sua expressão ou essencialidade artística. E, tanto os que ditam paradigmas apenas formais, quanto os que entendem ser a existência natural o determinante da atividade artística, consideram tanto a arte ornamental e geométrica como a manifestação mimética e naturalística como expressões primitivistas(HAUSER,1982). Mas o que vem primeiro? E será que uma manifestação ser mais antiga do que a outra é o que importa? O que diz Arnold Hauser a respeito?

“O que (...) mais importa, no que respeita ao naturalismo pré-histórico, não é ser este, ou não, mais antigo do que o estilo geométrico, mas sim o fato de revelar já todas as fases típicas de desenvolvimento por que a arte virá a passar nos tempos posteriores, não constituindo de modo algum, um mero fenômeno instintivo, estático e à margem da história, como o consideram os eruditos obcecados pela arte geométrica e rigorosamente formal. É uma arte que, partindo da fidelidade linear à natureza e na qual as formas individuais estão ainda exteriorizadas rígida e laboriosamente, se encaminha para uma técnica muito mais ágil e sugestiva, quase impressionista”.

Parece-nos, diante dessa visão hauseriana, que os elementos interpretativos do realismo naturalista pré-histórico não devem olvidar o processo de construção e desenvolvimento dessa manifestação pictórica primitiva. Hauser destaca dois pontos importantíssimos nesse labor interpretativo: 1. o fato de que o desenho primitivo alcançou altíssimo nível de precisão, de virtuosismo, propiciando em seu desdobramento temporal sucessivos rebuscamentos das imagens e 2. O fato de que o naturalismo pré-histórico se trata de um processo “vivo e cambiante”, que chega a usar formas de expressão múltiplas e com maior ou menor perícia, não obstante o longuíssimo caminho a ser percorrido até o advento de “fórmulas artísticas rígidas”. Ademais, ele observa que o realismo naturalista pré-histórico , o qual ele considera ser “ o mais estranho fenômeno de toda a história da arte”, não pode ser comparado à arte infantil ou a arte dos povos primitivos da atualidade, pois o que predomina em sua feitura é o sensorial.

Já o geometrismo corresponde a um avanço contextual na existência primitiva. O realismo esteve presente até os momentos finais do período paleolítica, da pedra lascada e com a passagem para o polimento da pedra, para o neolítico, observa-se, segundo Hauser, a primeira mudança de estilo em toda a história da Arte. Passa-se então a não mais representar fielmente a natureza. Surgem os esquemas, o conjunto semiótico de sugestões, a lembrar criptografias do tipo dos hieróglifos. A figura humana começa a ser traduzidos por “esboços geométricos sintéticos”.

Hauser destaca um aspecto crucial dessa transformação estilística:

“A modificação do estilo que conduz as estas formas de arte inteiramente abstratas é condicionada por um ponto crítico geral na cultura e civilização que representa talvez o golpe mais profundo na história da raça humana. O ambiente material e a constituição espiritual do homem pré-histórico sofrem uma alteração tão radical nesta época, que tudo o que lhe é anterior pode facilmente conceber-se como um progresso contínuo e procurado”.

É este, portanto, o momento em que o ser humano avança revolucionariamente na história, deixando de depender das “dádivas da natureza” para ele mesmo produzir seus meios de sobrevivência ( advento da pecuária e da agricultura), sendo esse o primeiro fator determinante da referida mudança de estilo artístico.

O outro aspecto contextual básico para o geometrismo surge da substituição da visão monista, em que a magia era o dado predominante, pela concepção dualista do animismo, ou do mundo que em si depende de um novo tipo de economia. Como mostra Hauser, o “artista” da era paleolítica vivia da caça, o que exigia que fosse um expert da observação ambiental, mas o homem neolítico já não necessita mais ser o imitador da realidade, passando agora a antagonizar com a natureza. Essa condição nova, em que se avulta a visão dualista-animista, é justamente o momento em que se impõe o estilo “formalista ornamental e geométrico”, que jamais voltou a se verificar em toda a história artística.

Em resumo, todo o estudo sobre o realismo naturalista está a mostrar que ele está vinculado a estruturas sociais em que predominam o individualismo e a falta de qualquer regulamentação ou governança social, enquanto o geometrismo expressa, por sua vez, requer ou corresponde à existência de uma certa uniformidade ou uniformização da sociedade, em que afloram os elementos da religiosidade.







Referências bibliográficas:

HAUSER, Arnold, História Social da Literatura e da Arte. Editora Mestre Jou, São Paulo, 1982.

WOODFORD, Susan, A Arte de Ver a Arte. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1983.

(*) Economista, estatístico, artista plástico, aluno do Curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFPB.

Nenhum comentário: